Amour

Um filme doloroso sobre o luto antecipatório: tudo o que não temos em Portugal porque o SNS não obriga e não cobre. Um filme que dói mas que é a realidade crua e fria. Se não quer saber não veja mas, se acaso se importa com a dor do fim, dê uma espreitadela. Vai ficar aprisionado ao enredo brilhante da nossa verdade mais dura. 

Por: Fernanda Barata

Há, neste filme, uma debilidade em toda a trama a par com uma melancolia gritante, uma demência sufocada entre as paredes da casa onde toda a acção se desenrola, com segundos de silêncio que parecem minutos e nos quais ficamos a boiar na angústia do fim.

O luto preparatório (do doente) e o antecipatório (do cuidador) talvez sejam os mais impactantes nas vidas dos seres vivos. É porque os mortos já não beneficiam da Terapia de Luto e os entes queridos sobreviventes - se sobrevivem - tendo perdido a oportunidade de serem amparados na fase pré-morte, beneficiarão apenas de uma Terapia pós-morte que os ajudará a integrar uma nova vida naquela que tinham, e que terá de continuar. Parece-me pobre fazer Terapia depois da morte se sabemos que a podemos antecipadamente. 

Quando escrevo "apenas" não estou a minimizar a Terapia de Luto: não é um menosprezo, pelo contrário. Acredito, contudo, que todos os entes queridos dos doentes deveriam ser incluídos em programas de Luto Antecipatório e todos os doentes terminais deviam ser abrangidos por terapias de Luto Preparatório. Contudo, continuamos englobados, todos nós, num sistema que tenta ignorar a morte e a fazer de conta que tudo isto é permanente, como nas histórias de amor. Esta história de amor eterna é uma das fantasias da filha deste casal, George e Anne: o devaneio de que o amor, como a vida, durarão para sempre. 

Ao contrário, a vida é drama que a maior parte das pessoas suporta estoicamente, é sofrimento apoiado numa esperança que se auto-alimenta; é sobrevivência, esforço inglório ou sem glória aparente. 

Curioso que três das mais impactantes passagens do filme sejam a dos bombeiros e demais pessoas a arrombarem a porta da casa, no início e no fim do filme, com a pergunta, "está alguém aí?"; Georges vestido de pijama a percorrer a casa durante a noite, a perguntar, "está alguém aí?"; e a filha, depois da mãe morrer, voltar a fazer a mesma pergunta na casa que os pais habitaram, completamente oca apesar dos objectos intactos, procurando no meio de um silêncio vazio "está aí alguém?". É porque - reparem bem - quando numa situação de doença terminal, não existe ninguém que realmente cuide,  por muitos médicos e enfermeiros e medicamentos, o fim é de uma dor inconcebível. 

Nesta trama, há um fechamento claustrofóbico de tudo sobre tudo: a realização do filme dá-nos a conhecer o diagnóstico e a finitude mas não reconhecemos nenhum confronto com ela; assistimos ao agravamento dos sintomas mas não identificamos nenhum sinal de acréscimo de auxílios paliativos e, depois, revelam-se os sinais de agonia sem qualquer espécie de paliação plausível. Há uma conspiração de silêncio de um-para-um que a teia do amor parece legitimar. 

Para além dessa conspiração, estão no filme todos os critérios de complexidade da dor do fim: sofrimento existencial e emocional, desmoralização do cuidador, desistência do doente e desejo de morte antecipada, isolamento. Não há qualquer indicação de cuidados, excepto os que mantêm Anne minimamente viva e higienizada; não há o pensar a doença e a sua evolução, a vida, a morte e para lá dela. Não há um sentido de propósito pessoal, existencial, ético. Nada. É o vazio absoluto com o corpo em queda. 

O casal apresenta, entretanto, traços de uma grande falha na relação com outros, e até mesmo com a filha: há uma frieza nas relações que espanta e distorce a nossa análise inicial. A tarefa de um Terapeuta seria, aqui, descongelar o gelo que molda a relação de George e Anne, ser capaz de trazer à tona a afectividade que é necessária em fim de vida para promover uma esperança realista em ambos os protagonistas da acção, para restabelecer a relação do casal, para completar o que eventualmente poderia ter ficado por dizer. 

Também o luto antecipatório poderia ter sido feito, havendo oportunidade, o que teria sido facilitador do trabalho posterior à morte de Anne. A sobrecarga de George nota-se à medida que o filme decorre, com manifestações muito evidentes de burnout: pesadelos, postura física desmoralizada, um semblante que evidencia extremo cansaço; alucinações visuais; astenia, falhas de comunicação com os vizinhos e com a filha. Há, contudo, um realismo no que toca aos cuidados físicos e é neste ponto que George se foca. Ele quer à força uma Anne que não morra; parece não compreender que ela está, de facto, a morrer. 

Qualquer Terapia, por escassa que fosse, teria ajudado a trabalhar a esperança, a confirmar a iminência da separação, a explorar e a validar as razões para uma não comunicação mais aprofundada sobre a doença e a morte de Anne. 

Há, em todo o filme, uma fadiga de compaixão que é desesperante e que a Terapia também poderia ter auxiliado, aliviando o cuidador a explorar as suas emoções, a facilitar a auto-regulação emocional. George e Anne têm uma relação singular. Distante e um pouco sombria. Georges é, no entanto, movido por um espírito de missão que desconcerta. Ele vê Anne (supõe ver) como ela era antes da doença, a tocar o seu piano, a lavar a loiça, a perguntar-lhe cuidadosamente pelo casaco. A ausência da companheira, a perda dos seus papéis, a solidão da sua vida, a raiva, a culpa, a profunda tristeza, as ambivalências e as ambitendências teriam sido emoções e sentimentos muito aliviados num luto antecipatório. Este, poderia não ter agido como meio de reconciliação com o facto da morte mas poderia ter evitado o desfecho trágico que tanto nos dói.

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